A mais improvável das eleiçõesA eleição de ontem nos EUA seria, ainda há poucos anos, considerada altamente improvável ou até impossível.
Não foi só a vitória de Barack Obama. Por cá fala-se menos no resto, mas foi também uma grande vitória do Partido Democrata. A maior viragem à esquerda na história dos EUA se considerarmos Presidência, Senado, House of Representatives e Governadores.
O Partido Democrata fica numa situação à qual não está habituado: clara maioria no Senado que fica a apenas 2 senadores de ser à prova de "filibusters" (bloqueios senatoriais), na House e com um inquilino na Casa Branca.
Um inquilino que, não deixando de ser americano e patriota, vê o mundo como o europeu comum também o vê. Um presidente dos EUA que, sabendo que a política externa americana deve, antes de mais, beneficiar os americanos, sabe também as atrocidades, incongruências e inconsistências que essa mesma política externa tem sofrido, com as consequências que bem sabemos ao longo das décadas. Lendo o seu livro "Audacity of Hope", mais propriamente o capítulo sobre política externa, quase que diríamos que estamos perante um europeu.
Os americanos não elegeram um político de carreira. Não elegeram um Santana Lopes ou um Mário Soares, se quiserem. Elegeram um homem que ganhou uma eleição para o senado estadual do Illinois sem quaisquer meios ou apoios; um homem que em 2004 tem o seu grande ponto de viragem política: é convidado pelo Partido Democrata para fazer o discurso "keynote" na Convenção Democrata de nomeação de John Kerry à presidência. Um discurso milimetricamente perfeito tornou alguém que era desconhecido fora do Illinois em alguém que, de repente, passou a ser uma figura em ascenção no Partido Democrata. Quando Kerry perdeu com Bush em 2004, um dos poucos pontos positivos da noite foi justamente a vitória de Obama na eleição para o Senado nacional, pelo estado do Illinois.
Mas, mesmo assim, Obama continuava a ser um outsider. Alguém com pouca experiência política comprovada (e isso é necessariamente mau?). Do campo dos "hopefuls" democratas, Obama era nitidamente desfavorecido perante uma estrutura e uma máquina democrática que tinha/tem em Bill Clinton o seu grande ídolo. Na altura, o único apoio de relevo que Obama tinha dentro do partido era o antigo senador de South Dakota, o politicamente "morto" Tom Daschle (um nome agora muito provável para Chief of Staff da nova Casa Branca).
Derrotar Hillary Clinton já foi um grande feito em si. Vencer a máquina republicana que continua a recorrer às tácticas de Karl Rove foi "apenas" a sequência lógica do que começou nas primárias.
Impressionante como os latinos, tradicionalmente "adversários" dos negros nos EUA, votaram massivamente em Obama (ter-lhe-á valido, por exemplo, a vitória em New Mexico, bem como uma grande ajuda na Florida). Impressionante como o sonho de Martin Luther King acaba por se realizar.
As coisas correram tão bem ontem que o novo presidente dos EUA ganhou onde tinha que ganhar e ainda em alguns autênticos feudos republicanos, como sejam especialmente Indiana e North Carolina. E se considerarmos que Obama é a favor de maior peso do estado na economia, é a favor da interrupção voluntária da gravidez, contra as armas (embora esta questão seja do foro estatal e não nacional), a favor de um serviço nacional de saúde que não discrimine quem não possui seguro de saúde (ou seja: a favor do modelo de saúde que vigora nos países da UE, basicamente) e contra a guerra no Iraque, então estas vitórias em estados tradicionalmente vermelhos (GOP) são ainda mais inverosímeis.
O ambiente era tão azul (Democratas) que até Elizabeth Dole (esposa de Bob Dole, um dos históricos republicanos) perdeu o seu lugar no senado contra uma virtual desconhecida do Partido Democrata, Kay Hagan, no estado tradicionalmente vermelho (Republicanos) de North Carolina.
Outra coisa que dá que pensar são os apoios que Obama foi granjeando. Desde mass media que tipicamente tomam posições, como sejam o Washington Post ou o NY Times, até outros meios de comunicação social que, para além de serem de direita, costumam manter-se neutrais, como sejam a The Economist (com Obama na capa desta semana, pré-eleição, com a frase "It's Time", para além de um editorial expresso de apoio) e o Financial Times. Membros do Partido Republicano, como sejam Colin Powell. Pessoas que representam o capital, como Warren Buffet, o homem mais rico do mundo. Os criadores dos Simpsons (no episódio desta semana, que passou 2 dias antes das eleições, Homer Simpson vota em Obama). Hollywood em peso. Jogadores da NBA que, no dia das eleições, apareceram nos respectivos jogos com fatos de treino a apelar no voto em Obama. São apenas alguns exemplos.
Fora dos EUA a vitória de Obama mais pareceu uma vitória caseira. Festeja-se desde o Quénia (onde o presidente disse algo como "esta vitória é nossa") à Indonésia (onde Obama viveu durante alguns anos na adolescência), passando pelo Japão, Europa em geral, Rússia (a capa de hoje do Pravda, principal jornal do país: "Acabaram 8 anos de inferno!"), etc.
Grandes vencedores da noite (para além dos mais óbvios):
- Howard Dean - o chairman do DNC. Passou de derrotado nas primárias de 2004 a primeira figura de um Partido Democrata de sucesso. Pegou no partido numa altura complicada e soube recuperá-lo.
- Nancy Pelosi - a maior parte dos europeus poderão não saber quem é Nancy Pelosi. Trata-se, tão somente, da mulher mais poderosa do planeta. Speaker da House of Representatives, dona de uma confortável maioria, é a figura de proa no braço legislativo dos EUA.
- David Axelrod - o chefe de campanha de Obama, desde o primeiro momento. Amigo pessoal de Obama, antigo jornalista em Chicago, é agora um consultor político que passou de pouco conhecido a sinónimo de sucesso em política e estratégia eleitoral.
A grande derrotada da noite é mesmo Sarah Palin. Uma escolha desastrosa (e é bem sabido que não foi escolha de McCain mas antes uma imposição do GOP). Estamos a falar de alguém que não tem problemas em dar a entender que visa, ela própria, uma candidatura à presidência mas que, ao mesmo tempo, foi apupada durante o discurso de concessão de ontem de McCain.
E apupada por uma razão muito simples: trouxe um tom de ressentimento, de divisionismo e de radicalismo a esta campanha, que acabou simplesmente por ajudar Obama.
João Pedro